ENTREVISTA de
BEATRIZ H. RAMOS AMARAL
(Poetisa brasileira e não só...)
concedida à TERTÚLIA ORPHEU
e ao blogue EXTRAVASAR, outubro de 2019
BEATRIZ H. RAMOS AMARAL
(Poetisa brasileira e não só...)
concedida à TERTÚLIA ORPHEU
e ao blogue EXTRAVASAR, outubro de 2019
1.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Cara poetisa e
professora Beatriz H. Ramos Amaral, a sua participação nos nossos projetos é
para nós um enorme prazer. Queira fazer o favor de partilhar connosco (e com o
público leitor) as motivações que a levaram a enveredar pelo fascinante mundo
da Poesia e da divulgação/promoção da mesma.
2.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Fale-nos do
processo de construção das suas obras literárias bem como das dificuldades que
sente (ou não) na sua elaboração e na afirmação das mesmas junto dos leitores.
Beatriz H. Ramos
Amaral: Na verdade, o processo de construção é um dos temas
de minha preferência, desde sempre. Podemos falar em processo de criação e também
nos procedimentos por meio dos quais o processo se desenvolve. Como tenho uma produção variada, plural, posso
dizer que o processo tem sido um pouquinho diferente, conforme o gênero literário (e até conforme a obra). Já publiquei romance, poesia, contos, um
volume de crítica literária, um ensaio biográfico, um livro jurídico. Quando escrevi o romance, lembro-me que eu começava
escrever cedo, de manhã, diariamente e que não me permitia deixar capítulos
inacabados de um dia para o outro. Eu tinha mais ou menos pré-determinado o que
cada capítulo deveria conter, era uma ideia,
um esboço mental, e eu ia escrevendo e também seguindo a intuição.
Escrevia quase sempre ouvindo música e, em especial, música instrumental e, de
preferência, obras de tonalidades maiores e com um ritmo vigoroso e andamento
rápido, porque era minha intenção dar velocidade à narrativa e eu queria fruir
este clima para transmiti-lo. Eu deixava a parte da tarde para revisão e
segunda versão. Antes de dormir, eu lia em voz alta, para mim mesma
inicialmente, e, depois, para alguma pessoa
da casa. Era uma maneira de eu sentir a dinâmica do texto e seu ritmo. Aproveitava e fazia, nesta leitura, correção ortográfica. E era tudo manuscrito. Isto significa que eu
era também minha leitora crítica,
naturalmente.
Nos
meus volumes de poesia, o processo de construção tem variado bastante. A maior parte
dos poemas surge espontaneamente a partir de uma frase, uma cor, uma imagem, um
estímulo sonoro, o rosto de uma pessoa, uma cena.
Esta frase ou fragmento inicial acaba por definir
um certo ritmo, frases mais longas que alternam com outras mais breves. Um
fragmento pede outro, uma palavra brota da outra e o ritmo é fundamental.
A
maior parte dos poemas eu manuscrevo antes.
Noutras vezes, escrevo-os, crio-os na tela do microcomputador. Depois de
desenvolvido, abandono um pouco o poema
e só torno a lê-lo dias depois, para
constatar se pede complementos, se pede depuração ou alguma supressão de
palavras.
Às
vezes, nas releituras, eu condenso o texto. Noutras vezes, faço inversões ou justaposições
de estrofes de dois ou mais poemas. Uma espécie de fusão ou intersecção.
Noutras
vezes, ao contrário, decomponho um só
poema em dois. E, deste modo, vou refinando
a primeira versão até chegar ao que pretendo.
Com
relação à poesia, não há hora certa nem dia certo. A qualquer dia pode surgir a
necessidade ou a ocasião apropriada para o nascimento de um poema.
Gosto
de sentir que há um certo elemento surpreendente, uma estranheza, um estranhamento, mesmo com palavras simples. Nem sempre a
estranheza vem das palavras. Muitas vezes vem da sintaxe, gosto muito de
intervir na sintaxe convencional, sair
um pouco da lógica. Cada poema é único e
tem sua própria lógica.
Em
1993, a Doutora Anna Luiza Campanhã de Camargo Arruda Bauer defendeu tese sobre
o processo de criação de meu livro
“ENCADEAMENTOS" (poemas) meu
terceiro livro em seu mestrado na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo). O estudo dela foi feito à luz da Crítica Genética e uma de suas
conclusões sobre meu processo de criação,
neste livro, foi a de que empreguei a rasura supressiva como principal
procedimento. Ela chegou a essa conclusão analisando meu caderno manuscrito com
os rascunhos juntamente com as pastas de dactiloscritos e com o livro já
editado.
Quanto
ao caminho das obras junto aos leitores, é algo que as editoras têm feito e eu
também, quando possível, divulgo poemas em meu site e nas redes
sociais. Participo de seminários, congressos, faço palestras sobre meu
trabalho. Fiz palestras interessantes no
Congresso Brasileiro de Poesia, no
estado do Rio Grande do Sul, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo e na
Casa da Escrita, em Coimbra, Portugal, em que tive oportunidade de abordar o
processo de criação.
Além
das redes sociais, tenho site pessoal
literário desde 2004.
A
internet amplia a possibilidade de leituras. Muitos leitores dos poemas nas
redes ou do site se interessam por adquirir, posteriormente, os livros.
3.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Se possível, faça-nos
um pequeno resumo da sua obra mais emblemática e destaque um ou dois temas que
possam eventualmente gerar mais interesse, polémica e/ou surpresa junto do
público leitor.
Beatriz
H. Ramos Amaral: Considero difícil dizer
qual obra seria mais polêmica. Falarei de três ou quatro que talvez possam ter
sido mais surpreendentes:
a) ENCADEAMENTOS,
de 1988, porque inovou bastante na estrutura formal, trazendo um conjunto de 65
fragmentos que podem ser lidos isoladamente, na sequência do livro isolados, aleatoriamente ou ainda como
fragmentos de um único e grande poema.
Quando lhe dei o título, eu
pensava em encadeamentos musicais, acordes, harmonia, e procurei estabelecer contatos
entre eles. Também pensei no “enjabement", claro. É um imbricamento
poesia/música.
b) CANÇÃO NA VOZ DO FOGO – Cássia Eller, que é um
ensaio biográfico, um estudo que faço sobre a trajetória estética da
intérprete. A surpresa fica por conta do gênero literário. Eu analisei letras e
melodias das músicas de seu repertório e analisei sua trajetória estética, sua
discografia completa e seus recursos estéticos. Depois de vários livros em
sequência todos de poesia, creio que
muitos esperavam que viria mais um livro de Poesia e veio este ensaio.
c) OS
FIOS DO ANAGRAMA - contos - é
surpreendente porque nele faço experimentações formais, mesclando linguagem poética
e narrativa, fatos e muito fluxo de consciência. Dois críticos chamaram os contos de
“contos-pulsações” ou de “contos-cantos”. Há também neles forte presença de
metalinguagem, que, aliás,
existe em boa parte de minha literatura.
4.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: A que tipo de
pessoas (eventuais leitores) poderá interessar mais a sua obra e porque razão
ou razões?
Beatriz H. Ramos
Amaral: Creio que meus livros podem interessar a quaisquer
tipo de leitores, os mais jovens ou maduros,
desde que gostem da literatura, da
interiorização, gostem das palavras, do
ritmo, da música, das surpresas , dos
estranhamentos, do trabalho de invenção, que irriga a terra das frases, nelas
inserindo espaços, pausas, silêncios,
diálogos, momentos
desconcertantes, instâncias de
intervalos e entrelinhas.
Na
verdade, não penso nisso – numa faixa específica de leitores enquanto escrevo. Só depois é que
verifico se há elementos a apontar numa ou noutra direção.
Sempre
busquei escrever um texto de que eu gostasse de ler, que me agradasse enquanto
leitora. Como
gosto de promover surpresas na sintaxe, gosto de concisão, condensação, gosto de explorar a potencialidade do “máximo
no mínimo”, os leitores que apreciam esses procedimentos de invenção certamente
hão de ser os mais interessados em meus livros. Mas, além disso, o interesse por meus livros poderá
vir por várias outras razões que não temos como objetivamente mensurar ou
avaliar. São várias as camadas textuais, de significação de uma obra, que
atingem de modo diferente, cada pessoa que dela tome conhecimento e com ela
dialogue. Depois de publicado um livro, sabemos que passa a também pertencer
aos leitores, que, evidentemente, o recriam, cada um em sua ótica e de acordo
com seu repertório de experiências de arte e de vida.
5.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Partilhe conosco
e com o público leitor a forma mais prática e eficaz de se comprar/adquirir os
seus livros.
Beatriz H. Ramos
Amaral: O meu ensaio crítico “A Transmutação
Metalinguística na Poética de Edgard Braga”, publicado no Brasil pela Ateliê
Editorial, pode ser adquirido no site da
própria editora. Eis o link:
Os
meus livros editados pela RG Editores,
entre eles “Os Fios do Anagrama”, que é um livro de contos e foi
premiado com o Prêmio Troféu Literatura Cora Coralina 2017 (ZL Books), podem
ser adquiridos mediante envio de e-mail ou telefonema para a Editora:
Para
ligar de Portugal, por exemplo, a
sequência completa é: 00 96 55 11
3230-8676.
O
meu mais recente livro publicado no Brasil, “Peixe Papiro”, também agraciado
com o Prêmio Literatura 2019, pode ser solicitado para a Scortecci Editora,
pela Livraria Asabeça:
6.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Queira destacar
e partilhar connosco e com o público leitor o seu melhor projeto literário até
agora. Fale-nos também dos eventuais projetos para o futuro.
Beatriz H. Ramos
Amaral: A resposta é difícil, pois o autor sempre tende a achar que o
projeto mais interessante é o atual. Creio que todos eles tem sua importância
dentro do meu projeto literário estético,
dentro do meu projeto poético,
mas, escolhendo alguns, destaco três: a) “ENCADEAMENTOS", pela
radicalização da experiência com a linguagem, experimentalismo poético e
assinalo que o livro atraiu a atenção de pesquisadores de literatura, no âmbito
acadêmico, vindo a se tornar o objeto da tese “Dos rascunhos à obra editada: um
itinerário poético”, de autoria da Profa. Dra. Anna Luiza Campanhã de Camargo
Arruda Bauer, tese apresentada à PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, primeiro livro dos quatro que publiquei com o célebre editor Massao
Ohno; b) meu livro-ensaio sobre a trajetória artística de Cassia Eller (1962-2001),
que se chama “Cassia Eller – Canção na Voz do Fogo" e embasado em muitas
pesquisas, entrevistas e comentários críticos sobre muitas das letras e músicas
de seu repertório. Este livro foi publicado pela Escrituras Editora; c) meu livro-tese sobre a obra do poeta
Edgard Braga (1897-1985), que foi um extraordinário artista brasileiro, um
pioneiro na poesia caligráfica e tactilogramática, chamado por Haroldo de
Campos. O livro se chama “A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard
Braga”, foi publicado pela Ateliê Editorial em 2013 em sua coleção de estudos
literários e amplamente divulgado em jornais e revistas de literatura brasileiras,
despertando, também, interesse fora do
Brasil; d) “Peixe Papiro”, por seu trabalho diferenciado
com a linguagem, recebeu o Prêmio Literatura 2019, na categoria poesia, e) e
também o livro “Poema sine praevia
lege", em que uso a experimentação. É um livro de poemas publicado em 1993
por Massao Ohno Editor e foi finalista do Prêmio JABUTI, da Câmara Brasileira do Livro.
Entre os próximos projetos, cito mais um romance, meu primeiro livro foi
um romance, publicado em 1980 e agora escrevo mais um, e um conjunto de ensaios
literários e críticos.
7.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Qual a sua
opinião e sensibilidade sobre o mercado livreiro no Brasil e em Portugal? O que
melhoraria e o que alteraria neste complexo mercado?
Beatriz H. Ramos
Amaral: Sobre este tema, observo, desde logo, que não sou uma
especialista, mas, como escritora e
também como leitora, sinto que está havendo uma transformação, que favorece as livrarias menores e as
editoras novas e pequenos selos editoriais.
Os leitores estão mais exigentes, querem qualidade e, lentamente, as editoras e
livrarias que não são governadas exclusivamente pela busca obsessiva do lucro e
trabalham visando qualidade, finalmente,
estão conseguindo mais espaço e se afirmando no mercado.
O que poderia melhorar: a valorização da arte, do
componente estético, o incentivo a autores novos ou não tão conhecidos, o estímulo a editoras
novas. Nenhum monopólio é
benéfico para a arte. A democratização é importante. E a qualidade,
evidentemente, como já frisei.
8.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Sabemos que
infelizmente a Comunicação Social tradicional (Imprensa / Rádio / Televisão) dá
pouco destaque aos Poetas/Escritores e os poucos que são “falados” / resenhados,
acabam sempre por ser os mesmos. O que pensa disto e o que propõe para que os Media passem a fazer o seu trabalho e a
terem de facto uma atitude de equidade e de justiça?
Beatriz H. Ramos
Amaral: Realmente, hoje em dia o espaço na grande imprensa para a literatura reduziu-se muito, o que é reflexo da não
valorização da cultura e da arte em geral e da baixa qualidade da educação. Nos
anos 80, havia muito espaço, nós
tínhamos todos os nossos livros resenhados, comentados, lidos e registrados pela grande
imprensa. Hoje, com a redução drástica
de espaço, a discussão literária acabou migrando para as revistas
especializadas, muitas delas somente digitais,
eletrônicas e boa parte delas ligada a algumas Universidades.
É
difícil propor soluções, porque a
situação é bastante desoladora. A literatura
está viva e vibrante e isso transparece no trabalho dos novos autores, das novas editoras, nas festas literários que
se multiplicam pelo mundo.
Mas,
para a grande imprensa voltar a se interessar por literatura e conceder maior
espaço aos autores, será preciso uma grande mudança de concepção, de mentalidade, com o reconhecimento de que a
qualidade é importante,
independentemente de aspectos comerciais. A diversidade também é elemento importantíssimo a ser reconhecido. Quanto mais
autores bons tiverem voz, melhor
será o desenvolvimento da própria literatura, do espírito crítico e da cultura.
Democracia se faz com diálogo e abertura. Olhar
numa só direção, constantemente, produz
pensamentos acanhados e mentes estreitas.
A
largueza de horizontes é importante para o presente, para o futuro e até mesmo
para a melhor compreensão e melhor fruição do imenso legado cultural e
literário que herdamos do passado.
Abertura
de pensamento e ampliação de espaço para a produção e divulgação do fenômeno
literário são fundamentais para todos nós.
9.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Muitas outras questões ficaram por colocar,
contudo, foi para nós um prazer e um privilégio termos “conversado” consigo e
termos conhecido um pouco melhor a poetisa e a professora Beatriz H. Ramos
Amaral. Agradecemos a sua participação nos nossos projetos e pedimos-lhe que
deixe uma mensagem/recado e/ou um desejo final.
Beatriz H. Ramos
Amaral: Agradeço, também,
a oportunidade de tecermos este diálogo,
que é sempre proveitoso e muito agradável.
A
mensagem que deixo é no sentido de que possamos todos nós continuar a produzir
literatura, fruir literatura e fruir
todas as formas de expressão artística: poesia,
narrativa, música - contemporânea, barroca, renascentista, impressionista, acústica
e eletroacústica, vocal, instrumental, popular, erudita, toda a música, artes visuais, plásticas e gráficas, pintura, desenho,
escultura, gravura, xilogravura, artes cinéticas, dança, teatro, cinema, videoarte.
As
expressões e linguagens artísticas estão entrelaçadas e navegar pelo imenso
oceano que as une, polifonicamente, é
uma das mais ricas experiências que o ser humano pode ter. Arte, universo, polifonia.
Como nos lembrou o extraordinário escritor Ítalo Calvino, em seu célebre livro
“Seis Propostas para o Próximo Milênio”. multiplicidade, leveza, visibilidade
estão entre as mais importantes características para a literatura neste
milênio.
10.
Tertúlia Orpheu / Extravasar: Escolha por favor um pequeno excerto e/ou poema de
um dos seus livros (publicados ou a publicar). Desejamos-lhe todo o sucesso e
sorte do mundo pois a sua obra bem o merece.
Beatriz H. Ramos
Amaral: poema TECIDO, de meu livro “Peixe Papiro”
T
e c i d o
Asa
de poema – anzol
para
fisgar
na
mesa uma linha
um
fio grafado de corda
cortes-recortes
a
tessitura do nó
e
a lâmina de Urano
faz
legenda de
papiro
no etéreo: foz
move-se
a areia na vertigem:
duna
dali
se extrai o néctar
de
pedra
pêndulo
e farol
hipótese
de concha
e
tempo
Setembro
2019
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